A quarta temporada de 'Black Mirror' apresenta uma tecnologia que permite que a consciência de uma pessoa seja transferida para outra Foto: Reprodução de cena de 'Black Mirror' (2017)/Netflix |
Para facilitar esse momento difícil para os mais próximos, profissionais da saúde são categóricos em afirmar que é preciso que a morte deixe de ser tabu. Uma conversa com a família ou um documento avisando como você deseja ser tratado no hospital se não puder se expressar podem ser essenciais para os médicos.
“A sociedade precisa refletir sobre isso. Uma vez que uma pessoa está na UTI, não precisa ser submetida ‘a tudo’ até que, como a gente diz, ‘consiga morrer’. Precisamos respeitar a vontade dos pacientes”, defende Thiago Martins, docente e coordenador da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) de emergências clínicas do Hospital das Clínicas da Unicamp.
O médico explica que a morte deve sim ser tema da ‘mesa do almoço’ para que nossas preferências fiquem claras e sejam respeitadas. Luiz Alberto Bacheschi, professor aposentado de Neurologia na Faculdade de Medicina da USP e coordenador da Câmara Técnica de Neurologia do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, concorda. Ele ressalta que a conversa precisa ser cotidiana, antes que ocorra uma emergência. “É importante conversar, porque se ocorrer dúvida no momento de levar para o hospital é problemático.”
Escolher a morte natural. Dentre as decisões que podemos tomar estão a interrupção de tratamentos e a ortotanásia, suspensão de suporte terapêutico — como a respiração mantida por aparelhos.
A ortotanásia é legal no Brasil por não causar a morte, apenas permitir que o processo já instalado ocorra de forma natural, sem a interferência médica. “Ela dá ao paciente a liberdade e a dignidade de ter um desfecho de vida que não agrida seus princípios religiosos, morais, nem sua vontade. Não significa antecipar a morte, mas dar à vida um desfecho digno — dar cuidados, carinho, atenção, não fazer sofrer”, explica Rita de Cássia Curvo Leite, professora e doutora em Direitos Difusos na PUC-SP e autora do livro Transplantes de Órgãos e Tecidos e os Direitos da Personalidade.
No caso de morte encefálica, o próprio Conselho Federal de Medicina (CFM) defende o caráter ético da suspensão de suporte terapêutico, por meio da resolução 1.826/2007. “Do ponto de vista ético e legal, após seu diagnóstico é dever do médico retirar os procedimentos de suporte que mantinham artificialmente o funcionamento dos órgãos vitais utilizados até o momento de sua determinação.”
Impasse. O Conselho Federal e os profissionais de saúde reconhecem que pode ser difícil para a família aceitar que a vida de alguém querido tenha chegado ao fim quando a pessoa ainda tem sinais vitais.
Para aliviar o peso da decisão da família, os especialistas apontam que é importante deixar claras as nossas vontades. Há até mesmo um documento indicado para expressar os desejos. Conhecido como Declaração Antecipada de Vontade (DAV), ele não precisa ser registrado em cartório para ser válido, explica Rita de Cássia.
A DAV serve para formalizar como você espera ser tratado quando não puder expressar suas vontades. Ela pode ser escrita à mão por qualquer pessoa e entregue à família e ao médico.
“Eu guardo esse documento esperando não ter que utilizar”, afirma Bacheschi. O médico explica que, com a declaração em mãos, ele conversa com a família sobre a vontade expressa do paciente. Mas isso não significa que a decisão seja simples.
“Uma paciente minha com Parkinson sofreu uma uma queda e teve fratura de vértebra, que doía terrivelmente e causou uma infecção no pulmão”, lembra o médico. “Ela tinha não só dado o documento para mim, como para duas sobrinhas, que sabiam que ela não queria entubação porque já tinha passado por isso outra vez e tinha sido terrível.” No entanto, quando a paciente teve uma crise respiratória, os familiares se assustaram e quiseram levá-la a um pronto-socorro, relata Bacheschi. “Ela foi medicada para evitar a dor, sedada, até que foi a óbito. E foi um sofrimento terrível, até para mim, como médico.”
Rita de Cássia explica que a família será sempre consultada, mesmo quando o paciente deixar a DAV. Se houver divergência entre o documento e a decisão dos familiares, a interferência da Justiça poderá ser necessária. “Eu gostaria de ver juízes mais sensíveis à vontade do paciente, mas nem sempre é assim. Para que você consiga no judiciário ter essa vontade respeitada, é importante ter a declaração”, indica a advogada.
Martins defende que o conflito pode ser resolvido, em diversos casos, com uma conversa franca entre a família do paciente e o médico. Ele afirma que os familiares também precisam ser tratados com atenção e suas angústias, ouvidas. “Às vezes, a forma de a família lidar com uma insegurança, com o medo da morte, é quando o médico faz uma pergunta como: ‘Você viu alguma coisa que te incomodou, que te deixou inseguro?’. Temos que sentar com essa pessoa, com calma, e perguntar como ela está.”
Ele relata que no HC há um esforço para tornar o tratamento mais humanizado. Médicos formados, residentes, alunos da disciplina de ética do curso de Medicina, entre outros, se reúnem duas vezes por semana para conversar sobre o estado dos pacientes e tomar decisões em casos delicados. O médico ressalta que nem sempre o clichê “fazer de tudo” para manter um paciente vivo é o mais indicado.
“O ‘tudo’ varia de pessoa para pessoa. É ‘tudo’ que faça sentido para ela. Às vezes, o melhor que posso fazer é mostrar que eu faço parte de uma equipe, oferecer apoio à família, manter a dignidade do paciente, abrir os horários de visita, oferecer o apoio espiritual que seja. Para um paciente que gosta de música, deixar um rádio à disposição. Isso é muito mais significativo”, defende o médico.
Doação de órgãos. Outra questão que pode causar dúvida na família é a doação dos órgãos do paciente, quando possível. No Brasil, a pessoa deve dizer à família que deseja ser doadora ou deixar uma declaração com o médico. Assim como em caso de ortotanásia, os familiares mais próximos serão consultados antes do procedimento.
Rita explica que, em 1997, o País aprovou uma lei (9.434/1997) que seguia o modelo do opting out, ou seja, todos eram automaticamente considerados doadores. Quem optasse por não doar deveria deixar sua vontade expressa.
“A legislação não foi dialogada com a população, não foi explicada. Então o que a população sentiu foi que ‘nossa, agora vão querer antecipar a minha morte para retirar meus órgãos’”, lembra a advogada. “A legislação queria aumentar o número de doadores e acabou reduzindo pela falta de informação.”
Em 2001, a lei foi alterada para o sistema do opting in, como funciona até hoje. A Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO) revelou no ano passado que quase metade das famílias diz ‘não’ à doação.
Na opinião de Rita de Cássia, o tabu em relação à morte ainda impede muitas pessoas de informar à família que gostariam de ser doadoras. “Eu fico triste porque temos bons profissionais da área médica, tecnologia de ponta. Poderíamos ter um grande número de vidas salvas, mas o brasileiro tem muito medo de alguns assuntos. Não deveria assustar”, defende a advogada.
Autonomia. Independente da decisão, os profissionais defendem que a autonomia do paciente sempre deve ser soberana.
“Esse é um princípio bioético fundamental”, diz Bacheschi. “Quando a gente fala em morte, fala em preservar a dignidade do paciente, não deixando de minimizar as dores, o sofrimento, dando todo o suporte de cuidados.”
Rita de Cássia tem a mesma opinião. “A gente é muito egoísta. A gente vê uma pessoa próxima e quer que ela viva, fique com você. Faz parte do ser humano ter esperança. Mas o que você pode fazer por ela a não ser dar carinho, amor, atenção e respeitar a vontade dela?”. Fonte: O Estado de S.Paulo.
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