Como podem existir unidades que oferecem tratamentos para qualquer doença: lesões, artrite, autismo, paralisia cerebral, AVC, distrofia muscular, câncer?
Do dia para a noite, nos últimos dois ou três anos, várias clínicas surgiram - 570 só nos Estados Unidos, de acordo com um estudo recente -, oferecendo terapias de células-tronco sem comprovação científica para praticamente todo tipo de necessidade médica.
Em teoria, as células-tronco podem ser úteis no tratamento de determinadas doenças que envolvem a perda de células, como diabetes tipo 1, mal de Parkinson ou osteoartrite. As células-tronco são células primitivas que podem se transformar em uma série de células e talvez servir como substitutas. Entretanto, o progresso tem sido lento. Depois da onda de empolgação há cerca de duas décadas, quase todas as pesquisas atuais ainda são realizadas em cobaias e placas de petri. Os poucos ensaios clínicos que estão sendo realizados ainda não saíram das primeiras fases.
O problema é que as terapias com células-tronco ainda são, em sua maioria, teóricas. Então, o que está acontecendo? Como podem existir clínicas e até redes de clínicas que oferecem tratamentos com células-tronco para praticamente qualquer tipo de doença - lesões esportivas, artrite, autismo, paralisia cerebral, AVC, distrofia muscular, câncer?
Uma clínica ortopédica, por exemplo, afirma em seu site que "as células-tronco são capazes de regenerar tecidos degradados além de aliviar a dor". Outra delas busca pacientes com doenças neurológicas, afirmando que "a natureza regenerativa das células-tronco extraídas dos pacientes adultos é o fato de serem capazes de impedir a degeneração celular e aliviar os sintomas associados à doença".
A rápida proliferação de clínicas de células-tronco "parece estar acontecendo em escala industrial em todo o país", afirmou Leigh Turner, bioeticista da Universidade de Minnesota, que, ao lado do pesquisador de células-tronco Paul S. Knoepfler, da Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia, em Davis, publicou um artigo em que calcula o número de clínicas no país.
"Eles estão funcionando desavergonhadamente. Se aproveitam das esperanças e sonhos de que tratamentos de células-tronco possam funcionar, mas não se apoiam em fatos científicos."
A agência reguladora de alimentos e medicamentos dos Estados Unidos (FDA, na sigla em inglês) permite que as clínicas injetem de volta células-troncos retiradas dos próprios pacientes, desde que as células, ou o tecido de onde elas foram extraídas, respeitem determinados critérios, incluindo "manipulação mínima", além de terem o objetivo de cumprir suas funções básicas.
Contudo, mesmo que os tratamentos oferecidos por essas clínicas pareçam questionáveis, o FDA não pode agir com base naquilo que um simples site diz.
"Eles precisam de casos concretos da administração clínica de células em pacientes reais. Essas clínicas são operadas por pessoas muito sofisticadas. Elas compreendem as leis muito bem e trabalham de forma a evitá-las", afirmou Ubaka Ogbogu, professor assistente de Direito na Universidade de Alberta, no Canadá, que estudou as clínicas e sua regulamentação.
Nos sites, as clínicas contam histórias e mostram vídeos de pacientes felizes. O site de uma que utiliza células-tronco para tratar doenças neurológicas exibe o vídeo de uma paciente chamada Barbara, acompanhada pelo marido. Ela conta que tem esclerose-múltipla e fala sobre como melhorou após o tratamento com células-tronco e agora é capaz de dirigir novamente pela primeira vez em anos. "Me sinto abençoada por ter melhorado com o tratamento", afirma.
Alguns cientistas querem questionar as clínicas compartilhando outros exemplos do tipo.
Terapias de células-tronco ainda são teoria, mas novas clínicas surgem a cada dia
Histórias envolvendo pessoas reais são poderosas. Os jornalistas utilizam esse recurso frequentemente - quase todos os artigos jornalísticos sobre um estudo ou um novo tratamento médico inclui o relato de um paciente, muitas vezes acompanhado de uma fotografia. Os centros médicos utilizam a mesma estratégia para fazer propaganda - um sorridente paciente que se livrou do câncer elogiando um tratamento revolucionário, uma pessoa que operou o joelho contando como a vida sem dor é muito melhor. Esse não é o tipo de evidência suficiente para convencer um cientista, mas muitas vezes é mais memorável do que as descobertas feitas por estudos científicos sérios.
O problema é que os pacientes que tiveram experiências ruins, ou que não sentiram qualquer efeito mesmo após gastar dezenas de milhares de dólares raramente entram em contato com os cientistas acadêmicos. E, de acordo com os cientistas, quando isso acontece os pacientes preferem não aparecer publicamente por uma série de razões - vergonha, acordos de não divulgação que muitos foram obrigados a assinar para receber o tratamento, medo de serem processados, ou a discrição em relação às próprias decisões médicas, disse Knoepfler.
Ele afirmou que recebe mais notícias de pacientes que a média porque escreve um blog sobre o assunto, mas que eles quase nunca aceitam a publicação no blog sobre seus casos utilizando seu nome real.
Todavia, Arthur Caplan, diretor da divisão de bioética do Centro Médico Langone, da Universidade de Nova York, não acredita que seja correto utilizar histórias ruins para contrariar histórias felizes. Assim como a maioria dos acadêmicos, ele desconfia das histórias contadas por pacientes, sejam elas positivas ou negativas.
Ele já escutou pacientes que voltaram à vida depois de terem morte cerebral confirmada, por exemplo, mas, em todos os casos, a confirmação estava incorreta. Além disso, "existem problemas com relações causais erradas: X me fez ter um AVC (acidente vascular cerebral), quando na verdade o AVC ocorreria de qualquer modo".
Histórias sobre resultados ruins podem não ajudar, afirmou, já que os pacientes que estão à procura de alguma esperança só vão prestar atenção nas histórias positivas e ignorar as ruins.
O argumento de que essas narrativas não ajudam não convence Ruth Gass, cujo cunhado, Jim Gass, teve uma experiência desastrosa com uma clínica de células-tronco no México. Em busca de tratamento contra um AVC, ele acabou com uma massa de células crescendo em sua espinha e ficou paralisado do pescoço para baixo, a não ser pelo braço direito.
Ela escreveu em um e-mail: "A vida de Jim foi destruída de forma trágica e desnecessária, e a questão não é se devemos ou não utilizar histórias como a dele. Devemos nos perguntar como podemos utilizá-las corretamente, encontrando outras que nos ajudem a colocar os pés no chão. Não entendo por que os cientistas não utilizariam narrativas capazes de contradizer tratamentos desonestos, distorcidos e sem comprovação". Fonte: O Estado de S.Paulo.
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