22/08/2016 - Botões com ímãs para quem tem Parkinson, peças para cadeirantes, casaco que vira barraca... Há um nicho crescente na moda que sugere que, em vez de ser parte do problema, ela pode apresentar soluções
A desginer Lucy Jones ganhou um prêmio da Universidade Parsons por sua coleção para pessoas que usam cadeira de rodas.
Há seis anos Maura Horton, dona de casa de Raleigh, Carolina do Norte, recebeu um telefonema de seu marido, Don, treinador de futebol no estado da Carolina do Norte. Ele estava na estrada e seguia para um jogo, disse que teve dificuldades para abotoar sua camisa e precisou pedir ajuda a um jogador (Russell Wilson, hoje quarterback do Seattle Seahawks). Horton fora diagnosticado com doença de Parkinson há quatro anos e os sintomas da doença só pioraram.
Assim, Maura fez o que qualquer pessoa faria diante do problema. Procurou no Google pelo termo “camisa fácil de abotoar”. Mas não encontrou muita coisa. "Olhei para a capa do meu iPad, vi aqueles ímãs minúsculos e pensei “que tal isto?” . Resultado: uma patente, uma empresa e 22 estilos de camisa. Maura Horton e sua companhia, MagnaReady, são parte de um novo subsetor da moda: o que Chaitenya Razdan, fundadora e diretora executiva da Care and Wear, batizou de “healthwear” (moda adaptada).
O setor utiliza as ferramentas e técnicas (e tendências) da moda e as aplica para responder aos desafios criados pelas doenças e invalidez. O “healthwear” faz parte de um movimento maior, em que designers treinados em moda clássica (e aqueles com quem trabalham) vêm repensando a premissa básica e a promessa da própria moda. Chamemos isso de design baseado em soluções.
Embora a moda seja com frequência taxada de frívola e decadente, esse nicho que vem crescendo sugere que, em vez de ser parte do problema - e símbolo das múltiplas divisões na sociedade (políticas, pessoais e econômicas) - a moda pode, na verdade, oferecer algumas soluções para o problema. Em maio, por exemplo, Angela Luna foi nomeada estilista do ano na Parsons School of Design da New School com sua coleção de roupas conversíveis para resolver problemas específicos da crise de refugiados: abrigo, suporte, visibilidade.
Assim criou um casaco utilitário na moda que podia se transformar em uma barraca, e uma jaqueta acolchoada que se transformava saco de dormir. Além de um colete com um dispositivo salva-vidas para flutuar na água; e outro que virava um canguru para bebê. E ela acompanhou Lucy Jones, que ganhara o prêmio em 2015 por sua coleção focada em roupas elegantes, minimalistas, para usuários de cadeiras de rodas, levando em conta as proporções alteradas que o indivíduo precisa por estar sentado permanentemente, e o desafio de colocar e tirar as peças quando uma pessoa é fisicamente incapaz.
“Começou quando um professor meu nos desafiou a criar alguma coisa que pudesse mudar o mundo”, disse Lucy. “Pensei comigo:’como fazer isso? Isto é moda’”. Ela conversou com um primo de 14 anos que tinha uma doença chamada hemiplegia, em que um lado do corpo fica mais incapacitado do que o outro. Ele lhe disse que as pessoas faziam bullying com ele na escola por não conseguir levantar as calças sozinho o que o deixava muito envergonhado.
A estilista entrou em contato com a Unires Cerebral Palay, em Nova York, e começou a orientar “focus group” (grupos de discussão). “Não conseguia acreditar. Uma coisa que todo mundo faz - pôr a roupa e tirar a roupa - não deveria ser um enorme problema”, disse ela. Chaitenya Razdan teve uma epifania similar em 2014, quando trabalhava em uma startup internacional depois de passar um período no banco Goldman Sachs.
Ele percebeu que alguns membros da família que estavam lutando contra um câncer usavam o que parecia ser a parte de cima de meias 3/4 nos antebraços. As meias eram usadas como uma cobertura não muito atraente de cateteres centrais implantados perifericamente, linhas de infusão intravenosa quase permanentes no antebraço. Conhecidas como linhas PICC, elas permitem o acesso fácil à veia para administração de antibióticos ou quimioterapia, entre outros usos. Depois que sua mãe, anestesista, mencionou para um ex-colega do hospital Johns Hopkins que seu filho tinha ideia de aprimorar aquela cobertura, Chaytenia Razdan juntou-se com a esposa de um amigo que trabalhava na Kensi, marca contemporânea de moda para meninas.
Em parceria criaram o que é na verdade uma manga muito colorida, não diferente de uma versão truncada do que os jogadores de basquete e corredores usam, salvo que é feito com um tecido antimicrobiano e tem uma abertura em malha para tornar visíveis os apetrechos e permitir que respirem. Pode ser customizada de várias maneiras e quem usa pode parecer uma espécie de LeBron James, não um paciente.
A ideia foi seguida por camisas - polo, de beisebol e com zíper - que permitem a inserção e remoção de catéteres centrais e portos, e também por uma colaboração com Lucy Jones para produção de luvas feitas especificamente para usuários de cadeiras de rodas. (No geral os usuários adaptam luvas de moto).
“O que você usa tem um impacto profundo sobre sua psique”, disse Razdan. “Pode fazer com que você se sinta no controle da situação num momento em que é fácil sentir que as coisas à sua volta estão fora do controle”. Embora muitas das pessoas envolvidas em design baseado em soluções tenham um fervor missionário quando falam sobre que fazem - não apenas sobre o que isto significa para as pessoas às quais se dirigem, mas também o que significa para seu setor de moda e a sua imagem na sociedade - não escapa a eles o fato de que se trata também de uma importante oportunidade de negócios.
Segundo um estudo do Centers for Disease Control and Prevention (Centros de Controle e Prevenção de Doenças), um em cada cinco adultos nos Estados Unidos tem alguma deficiência. “Todos corremos o risco de ter alguma deficiência em algum ponto da nossa vida”, disse o médico Thomas R. Frieden, diretor da agência. "Este é um setor equivalente a US$ 40 bilhões”, afirmou Razdan, que está em negociações com um “estilista muito famoso” para repaginar uma luva de hospital. Mais de 580 milhões de pessoas são admitidas em hospitais todo anos, segundo o World Medical Markets Factbook.
Tudo parece tão óbvio que é difícil não nos surpreendermos.
A moda, que era um mundo caracterizado pela exclusividade - roupas para os muito ricos ou muito magros, para os insiders, pessoas que sabem onde comprar - nos últimos anos vem passando por uma revolução democrática. Se as portas foram abertas primeiramente pela popularização da alta moda por Yves Saint Laurent, com a moda prêt-à-porter nos anos 60, elas foram escancaradas para as massas na virada do século com o advento da “fast fashion” e a ideia de que a economia não deve determinar quem tem acesso a roupas cool, na moda.
A partir daí não demorou para a mesma ideia ser aplicada a tamanho, idade, sexualidade e religião. Mas resolver o problema das pessoas com alguma deficiência física e deslocadas sob vários aspectos é a última fronteira da democratização. Embora os avanços na tecnologia e legislação médicas tenham criado situações em que as pessoas com doenças de longa duração estão cada vez mais fazendo parte da mão de obra e da vida cotidiana, levou um tempo para que as implicações disto - quer dizer, elas precisam de roupas que lhes permitam fazer tudo e ao mesmo acomodar sua realidade física - serem absorvidas.
A manufatura também não acompanhou o ritmo da realidade e Jones e Luna citam problemas com material e moldes não padronizados (pessoas em cadeiras de rodas, por exemplo, precisam de tops com corpos truncados, mas braços longos) são obstáculos a uma produção maior. Além do aspecto prático, existe também uma questão fundamental, sobre para que serve exatamente a moda. O escapismo há muito tempo é considerado por muitos a finalidade da moda. Se você conversa com executivos de marcas conhecidas, as chances são de que eles falarão o tempo todo sobre “sonho”.
Mesmo quando a moda se envolve com assuntos do mundo real, isso ocorre sempre no contexto de uma arrecadação de fundos (muito atuante aliás nos eventos sobre Aids e câncer de mama), ou em suas formas tradicionais: a controvertida coleção “Homeless” de John Galliano para a Dior, por exemplo, com roupas em papel jornal inspiradas por homens dormindo à margem do Sena. Quando Angela Luna mergulhou na crise dos refugiados ela pensou em se transferir da Parsons para uma escola com um programa de relações internacionais mais tradicional. Quando percebeu que suas habilidades poderiam ter uma aplicação prática, teve de vencer o estigma do refugiado “chique”, ou seja, a ideia de que estava se “inspirando” numa crise para criar roupas caras.
Ela não pensava o trabalho como a preconceituosa exploração pde um problema, mas via nele uma ferramenta para melhorar as coisas e criar um sistema de ajuda. Assim, na Parsons, foi criada uma nova disciplina chamada “sistemas e sociedade” para os alunos do curso de Fine Arts. "O foco é sobre como utilizar a educação e o aprendizado dentro de um contexto mais amplo”, contou Burak Cakmak, reitor da escola de moda na Parsons. "O curso oferece aos jovens estilistas uma oportunidade de trabalhar e ter sucesso em áreas tradicionalmente fora do setor de moda, mas também ajuda a definir o futuro das atividades de moda, expandindo seu escopo."
Tradução de Terezinha Martino
Fonte: O Estado de S.Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Publicidades não serão aceitas.