sábado, 3 de dezembro de 2016

Doentes de Parkinson «são, muitas vezes, terra de ninguém» / Portugal

Claramente, o SNS (Serviço Nacional de Saúde) não está preparado para tratar a doença de Parkinson. Esta era a pergunta que se colocava e as respostas revelaram uma distribuição assimétrica dos neurologistas, que as zonas com mais idosos é onde não existem médicos, um acesso aos fármacos heterogéneo, que não há acesso a algumas das estratégias terapêuticas mais inovadoras e que os doentes nem sempre são referenciados para fisioterapia, sendo, «muitas vezes, terra de ninguém».

Na mesa-redonda que encerrou o Congresso de Neurologia 2016, no passado dia 26, em Lisboa, o objetivo era responder ao tema «Está o SNS preparado para tratar a doença de Parkinson?». Joaquim Ferreira, neurologista e diretor do Campus Neurológico Sénior do Laboratório de Farmácia Clínica e Terapêutica da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, moderou a sessão, tendo começado por dizer que «faz todo o sentido discutir esta questão porque estamos num momento de crise ou de viragem em vários domínios e vamos ter que lidar com várias mudanças».

A primeira delas, segundo o moderador, «é o número de doentes que nas próximas décadas vai aumentar porque a estrutura demográfica está a mudar e, como tal, vamos ter mais pessoas com 65 anos, 70, 80 e 85 anos».

Uma segunda razão pela qual faz sentido discutir a situação atual e futura da doença de Parkinson é o fenótipo dos doentes, que, de acordo com Joaquim Ferreira, «também está a mudar»: «Hoje em dia, os doentes ficam bem do ponto de vista motor quando são operados, contudo falamos de um corpo bom num cérebro deteriorado do ponto de vista cognitivo.

Ou seja, cada vez tratamos melhor os pacientes, o que leva a que tenhamos cada vez mais doentes em estadios avançados», concretizou o orador.

Em suma, «no futuro vamos ter mais doentes e mais doentes a chegar a estadios IV e V, não avançados, mas sim tardios, com perda de autonomia, e também não terminais. Ou seja, pessoas com alterações psiquiátricas, dementes e dependentes ou institucionalizadas».

Por outro lado, «o padrão de como a doença se manifesta está a mudar e vai-se alterar ainda mais.

E, em paralelo, também a evidência do modelo que suporta a intervenção está-se a transformar», considera o neurologista. «Estamos habituados a lidar com o doente na consulta, fazemos intervenção farmacológica e o doente volta para casa, mas cada vez mais este modelo deixa de fazer sentido».

Aliás, de acordo com Joaquim Ferreira, «é fácil de perceber o quanto absurdo é escrever uma carta ao médico de família para passar dez sessões de fisioterapia por ano, numa fase em que sabemos que a fisioterapia específica para tratar a doença ou o exercício como intervenção terapêutica é eficaz para tratar problemas que não têm uma resposta farmacológica visível e que as intervenções têm um modelo que deve ser continuado no tempo».

«No futuro vamos ter mais doentes e mais doentes a chegar a estadios IV e V, não avançados, mas sim tardios, com perda de autonomia, e também não terminais. Ou seja, pessoas com alterações psiquiátricas, dementes e dependentes ou institucionalizadas», alertou Joaquim Ferreira

Na sua opinião, «passar uma quantidade de sessões de fisioterapia por ano não faz sentido e nós aceitamos isso como uma inevitabilidade».

Dissociação entre a abordagem terapêutica necessária e a que é feita na prática

Em síntese, para o especialista, «há cada vez mais uma dissociação entre aquilo que seria o padrão para uma abordagem terapêutica deste tipo de doentes e aquilo que na prática estamos a fazer».

Os exemplos dados são inúmeros, entre os quais «a simples questão de assumirmos que os doentes de Parkinson têm um risco aumentado de ter lesões cutâneas e melanoma e que devem ter uma avaliação dermatológica anual».

Como tal, «a questão que se coloca é se estamos a incorporar toda esta multidisciplinaridade e interdisciplinaridade na nossa prática», concluiu Joaquim Ferreira, salientando que esta foi, aliás, a razão deste desafio e que o levou a querer ouvir a opinião do painel de especialistas convidados. A pergunta à qual tinham de responder era se consideram se «estão ou não a fazer o que é suposto?»

Estão os vários protagonistas a fazer o que é suposto para tratar os doentes de Parkinson?

Esta foi a pergunta colocada aos vários especialistas convidados e que representam os vários setores. Ficam as opiniões de representantes dos médicos, dos hospitais, dos doentes, bem como a situação atual relativa ao acesso às terapêuticas farmacológicas e não farmacológicas.

--Os médicos
«É precisamente nas zonas com mais idosos que temos menos ou nenhum neurologista»
Miguel Gago (neurologista e presidente da Sociedade Portuguesa das Doenças do Movimento)

«Embora existam desafios e limitações, os médicos estão a fazer o que é suposto na doença de Parkinson. O principal desafio, do ponto de vista da prática clínica, é a distribuição geográfica assimétrica dos especialistas. Existem imensos neurologistas na região de Lisboa, Porto e Coimbra e, depois, nos outros distritos 1 ou mesmo 0 neurologistas, como é o caso de Évora, Castelo Branco e Santarém.

Este fenómeno está relacionado com a proximidade dos centros hospitalares universitários, mas a principal razão é a correlação com a maior densidade populacional. De facto, existem mais idosos no Norte e em Lisboa, mas do ponto de vista percentual é a Região Centro e o interior do Alentejo que têm mais idosos e menos neurologistas.

No Centro existem 4 neurologistas com interesse na doença de Parkinson para 100 mil habitantes idosos, no Norte existem 7, em Lisboa 9 e é precisamente nas zonas com mais idosos, no Alentejo, Algarve e Regiões Autónomas, que temos menos ou nenhum neurologista.

A assimetria geográfica é claramente o maior desafio para nós médicos e sociedades científicas.
Por outro lado, outro grande desafio é fazer um registo nacional sobre a doença, que pode ajudar a saber onde estão os doentes e a tomar as melhores atitudes e estratégias.»

--Os hospitais
«Falham imensos aspetos no processo de produção»
Ana Escoval (presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar de Lisboa Central)

«Acho que ninguém está a fazer o que é suposto. Em primeiro lugar, esta é uma doença que necessita de uma equipa multidisciplinar (médico, enfermeiro, terapeuta da fala, fisioterapeuta) para atingir os melhores resultados e falham imensos aspetos no processo de produção.
Depois, na vertente da organização, o problema é ainda maior porque criámos um sistema de saúde em caixinhas verticais (hospitais, CSP, cuidados continuados) e quando a pessoa precisa de cuidados é obrigada a percorrer o sistema todo. E esta interligação e articulação e percurso não estão a ser feitos como devem de ser.

As estratégias passarão por reformas de proximidade que se centrem nos recursos dos doentes, que olhem a pessoa e o percurso que tem de fazer, mas sobretudo que se olhe para os dados e para a informação e se saiba tirar lições e melhorar.

Por outro lado, para a resposta a esta e outras doenças, os serviços de saúde devem envolver os agentes da comunidade, ter uma gestão mais proativa e de negociação com os doentes relativamente aos seus planos individuais de cuidado e ainda desenvolver melhores sistemas de informação. Fortalecer a política de financiamento da saúde, dar cobertura às populações, melhorar a eficiência e promover uma forte liderança nas unidades de saúde são outros aspetos cruciais, aos quais se junta a necessidade de “sair” dos nossos gabinetes e conseguirmos trabalhar em conjunto.»

--Os doentes

«Os doentes não têm o que merecem no SNS»
Ana Botas (vice-presidente da Associação Portuguesa de Doentes de Parkinson)

«Existem pacientes que sabem da doença e das suas necessidades, entre as quais o facto de ser uma patologia que requer uma equipa multidisciplinar e até se envolvem no processo, mas a grande maioria dos doentes não sabe o que é suposto fazer. Por outro lado, a maioria das pessoas que são encaminhadas para a Associação vêm do setor privado.

Relativamente às queixas, estas são ainda muitas, entre as quais as enormes listas de espera para a especialidade de Neurologia ou para ter acesso à fisioterapia, que não é especializada. Por outro lado, os doentes dizem-nos que há muitos médicos de família que só prescrevem os medicamentos e não encaminham para a fisioterapia ou para a Associação.

Consideramos que podemos ser um bom parceiro do SNS porque fazemos formação de formadores, damos apoio aos doentes e familiares e informamos, que é o que mais falta faz. De facto, a iliteracia em saúde é o nosso maior inimigo. Em suma, ainda falta um longo caminho a percorrer na abordagem multidisciplinar e os doentes não têm o que merecem no SNS, pois devia haver mais apoio. Os pacientes consideram mesmo que o SNS nada faz por eles.»

--Acesso aos medicamentos

«Não temos os medicamentos que interessam»
Mário Miguel Rosa (neurologista e farmacologista clínico, responsável pela consulta de Doenças do Movimento no Serviço de Neurologia do Hospital de Santa Maria)

«Não temos os medicamentos que interessam. Não temos acesso fácil à apomorfina, à duodopa e não temos acesso a alguns medicamentos, nomeadamente agonistas alfa-aminérgicos. Portugal tem cinco fármacos desta classe comparticipados, mas a Alemanha tem 10, por exemplo.
Por outro lado, com os agonistas alfa-aminérgicos conseguimos tratar todos os doentes que queremos, mas não na fase avançada da doença.

Para além disso, existem alguns centros que têm acesso a algumas estratégias medicamentosas e outros que não, dependendo de as administrações hospitalares aprovarem ou não a sua utilização e da agilidade na autorização de utilização excecional (AUE) e, mesmo de haver ou não acesso à própria AUE de alguns medicamentos que não são comparticipados.

Em suma, a questão do value for money de cada medicamento, a capacidade de avaliação do custo-beneficio e a sustentabilidade do fármaco interferem com as decisões em vários países, incluindo Portugal.

Nos últimos três anos aprovámos 21 medicamentos para o sistema nervoso por procedimento centralizado, dos quais alguns para a doença de Parkinson.

Destes, foram relevantes para nós o Xadago (safinamida), que foi aprovado a 24 de fevereiro de 2015, mas que não está acessível (o preço aprovado em Portugal é de 209,99 euros por 30 unidades); bem como o numiente, que tem 4 formas de libertação e nem sequer tem preço em Portugal, passando-se a mesma situação com o ugentis (opicapone) que é de nossa produção e que foi aprovado a 24 de junho de 2016.

Depois da comercialização e da comparticipação coloca-se também a questão da acessibilidade e das falhas de acessibilidade, sendo a amantadina a substância que mais frequentemente falha, seguindo-se a rasagilina e também a primidona e mais raramente o pramipexol e a reticulina.

A perspetiva em relação ao futuro não é brilhante, mas neste momento talvez estejamos ligeiramente melhor do que há cinco anos atrás. Algumas moléculas são potencialmente promissoras, mais para as fases iniciais do que avançadas, concluindo que os nossos doentes que estão em estadio IV e V provavelmente vão terminar a sua existência sem experimentar novas drogas.»

Fisioterapia por sessões vs por resultados

--«Fisioterapia por resultados tem potenciais efeitos nos cuidados»
Anabela Pinto (médica fisiatra, professora na Faculdade de Medicina de Lisboa, responsável pelo apoio de Reabilitação Neurológica de Hospital de Santa Maria)

«Fazer fisioterapia por sessões ou por resultados e uma questão em aberto e não há uma resposta única e consensual. A primeira é vantajosa se pensarmos que o SNS faz um grande esforço financeiro para prestar apoio a uma doença com uma prevalência de 1,4 doentes por 100 mil habitantes, mas como há planeamento insuficiente não sabemos onde estão os doentes o que, por sua vez, gera aumento de custos.

Já a fisioterapia por resultados, e por estar centrada no doente e na procura de um estilo de vida saudável, tem potenciais efeitos nos cuidados, na redução dos dias de internamento e de comorbilidades, mas também tem contras, como a evidência limitada quanto ao custo-benefício e o subfinanciamento crónico».

Por outro lado, falamos de uma doença crónica progressiva e tardia, com um diagnóstico clínico com falhas em 50% dos clínicos gerais e mesmo de 10% nos especialistas das doenças do movimento.
De salientar também o facto de ainda não existirem biomarcadores para o diagnóstico, para o tratamento e para a evolução, o que limita a eficácia das terapêuticas potencialmente neuro protetoras.

Devemos lembrar igualmente que esta é uma patologia complexa e heterogénea e que a redução dos neurónios na substância nigra é apenas a ponta de um icebergue.
Como tal, esta complexidade também exige uma complexidade nos cuidados a prestar, diferenciação em áreas especializadas e centros especializados.

Temos, de facto, assistido a uma enorme mudança no paradigma do tratamento da reabilitação para a doença de Parkinson e sabemos agora que o exercício melhora a saúde motora.
Relativamente ao tipo de exercícios, estudos recentes apontam para a necessidade de uma combinação dos vários tipos de programas de exercício, de uma maior duração dos programas e uma avaliação do efeito neuro protetor e, nesse sentido, a prescrição de sessões de fisioterapia não fará muito sentido.» Fonte: Tempo Medicina.

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